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Resenha: Stephen King se consolida mestre do horror moderno em “Com Sangue”

 

Com Sangue/Divulgação

O que faz com que um autor navegue de vento em popa através dos mares das décadas e das diferentes gerações? O horror literário já não está repleto de repetições e clichês? Pois o mestre do horror moderno Stephen King mostra como amadureceu com maestria, trata cada trama com muito zelo e é capaz de atingir diferentes gerações e um diverso público em sua última coletânea de contos “Com Sangue” (no original If It Bleeds), livro lançado em terras tupiniquins em Setembro de 2020 pela Editora Companhia das Letras em seu selo Suma, que não para de agradar os fãs do autor com traduções relâmpago de seus lançamentos e relançamentos em capa dura de títulos esgotados.

O título traz quatro contos originais e dizer que cada um tem média 100 páginas é jogar por baixo. Essa característica não é novidade para os leitores do Rei, cujos contos poderiam facilmente ser lançados como novelas independentes (vide grandes sucessos do cinema adaptados de seus contos como “Conta Comigo” e “Um Sonho de Liberdade”). Isso porque King cumpre com precisão aquilo que pretende em cada conto; mesmo quando deixa de se aprofundar na construção de algum personagem, que pode até permanecer pouco familiar a nós leitores ao fim do conto, mas consegue fazer dele um instrumento de sustentação e desenvolvimento de um processo narrativo que se propõe (caso do conto “Rato”, último da coletânea).

E se atualmente mortos vivos e apocalipse são temas batidos e clichês dentro do gênero, King consegue utilizá-los de maneira particularmente interessante e envolvente, uma vez que tais temáticas nem chegam a serem as principais dentro de seu conto respectivo. O que nos faz fechar um livro do Rei e ficar com a mente remoendo a respeito do que foi lido é a intrínseca, sempre moderna e surpreendente natureza humana; a relação introspectiva do personagem para consigo e para com um outro personagem que nos faz questionar o que faríamos no lugar dele, revelando quais seriam nossos próprios limites morais.

“Qualquer notícia Com Sangue vende mais” diz uma personagem de um conto e esse é um exemplo de como o enredo tem muito que dizer sobre nossa natureza curiosa, curiosa para consumir o que é apelativo, o entretenimento que nos incita no raso e chulo, mesmo sem grande poder argumentativo. Seria o título do livro uma metalinguagem apontando para essa crítica? Há quem tenha dirigido seu olhar incauto para o livro por causa desse título apelativo. Mas, para felicidade desse leitor, King não nos oferece somente o sangue de uma morte barata e frívola, mas toda uma jornada de crescimento e fortalecimento de personagens cujo sangue pode ou não ser derramado de maneira dramática.

Temos no conto “O Telefone do Senhor Harrigan” a linda amizade entre gerações, onde as posições de mentor e aprendiz se substituem quando um jovem adolescente presenteia um aposentado com um celular moderno e totalmente complexo para o senhor. Aqui, King mexe com nosso senso temporal; o conto se passa num passado não distante, o telefone celular é moderno para o senhor, mas para nós é antiquado, além de outras informações que nos soam anacrônicas (a Amazon é só uma start up), de tal forma que somos instantaneamente velhos habitantes e conhecedores das circunstâncias do enredo. O fator sobrenatural aqui é completamente secundário, só se recorre a ele como recurso de acesso aos limites da maldade e vingança humanas, motivadas por traumas e tristezas passadas. Quem nunca quis se vingar de um bully no ensino médio? E se você tivesse o poder para fazer isso sem lidar com nenhuma retaliação posterior, faria?

“A Vida de Chuck” é um dos mais originais contos do autor, com uma estrutura narrativa que faz com que você não entenda nada na primeira vez que lê, mas faz todo o sentido quando se analisa os atos do ponto de vista correto. O conto traz também um instantâneo sentimento de nostalgia, uma vez que acompanha diversas fases da vida de seu personagem principal, começando de trás pra frente, partindo de quando tem de encarar de perto a morte vindoura até sua juventude. O contexto parece ser um mundo onde há um apocalipse iminente e algo com certeza não está bem, embora saibamos sobre isso tão pouco quanto o autor nos permite. Mas isso é proposital, o feixe de luz que King oferece ao nos guiar pelo enredo é curto e os grandes mistérios são pequenos o suficiente pra se desenrolarem dentro do núcleo familiar dramático do personagem e da esfera de seus arrependimentos e aspirações, lunáticas e juvenis (quem nunca?).

O ponto alto da coletânea fica com a volta de Holly, já familiar para aqueles que leram a trilogia de Bill Hodges, também de autoria de King, no conto “Com Sangue”. Aqui a personagem passa por uma verdadeira emancipação, sem deixar de lado seus medos e angústias, o que nos faz familiarizarmos com sua trama tão humana que “voa alto sem sair do chão”. Digo emancipação porque a personagem conquista uma incrível dose de força para encarar de perto uma ameaça sobrenatural, da qual somente ela tem suspeitas, e corre o risco de ser taxada de louca caso emita essa opinião. Holly encara de frente esse vilão sobrenatural e antigo, mas não sem antes encarar aquilo que é familiar a todos, como sua problemática relação com a mãe e a saudade de antigos amigos, cujas lições a acompanham até o fim. Ouso dizer que este é o melhor conto da coletânea e Holly merecia uma novela independente, de longe é a personagem cujo desenvolvimento é o mais humano, nada de heroico e sobre humano, ela é cheia de paranoias e medos mesmo, mas muito cativante, numa investigação independente e de prender o fôlego. 

No último conto, “Rato”, temos fragmentos biográficos da vida do Rei em seu escritor fictício. Mais uma vez, isso não é novidade, a obra de King está repleta de autores cujas jornadas desvelam dramas pessoais e superações de barreiras no processo criativo. Talvez estes personagens sejam os que mais nos ofereçam um espelho da face de seu criador. O conto é o mais raso da coletânea, mas oferece uma jornada angustiante de solidão em busca de um autoconhecimento suscetível de alucinações e loucura.

Assim, Stephen King se consolida mestre do horror moderno, através de incursões e análises psicológicas, oferecendo várias  oportunidades de nos identificarmos com seus personagens. Aqui, encontramos jornadas heroicas que realmente inspiram, pois são jornadas comuns, de pessoas comuns e que se fazem familiares por não terem nervos de aço e uma moral inabalável. O universo de King se expandiu e seu horror se atualizou ao passo que o autor abriu seus olhos para os problemas modernos de uma sociedade moderna de difícil manutenção, como um Iphone 11 nas mãos de um senhor que só lê as notícias no jornal de papel. Se você é humano, uma pessoa com sangue, vai se identificar e se entregar ao horror de Stephen King.

Sobre Emerson Dutra

Um psicólogo que tem o mundo nerd como seu guarda roupa para atravessar para uma Nárnia que é mais divertida, interessante e justa que nossa realidade compartilhada.

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