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Artigo: Por que os anti-heróis, como Cruella e Loki, são tão populares?

Atualmente existe uma onda de personagens populares que compartilham características de anti-heróis. Geralmente eles podem ser identificados como aqueles personagens de morais duvidosamente sutis, até aqueles que são vilões historicamente consagrados na cultura pop. E também têm a característica de serem mais atraentes que o próprio herói ou qualquer pessoa correta que é fatalmente ofuscada por ele na obra. Mas não se engane, o anti-herói não é produto apenas da moda contemporânea, pois até Robin Hood, do século XII já se encaixava no perfil.

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Na nossa cultura, geralmente o herói é abençoado com um dom que cai do céu, ou com o qual nasceu, enquanto o vilão é um gênio que por causa das traquinagens do destino acabou ocupando tal posição. Dessa forma, o herói tem apenas a obrigação de honrar com o poder com o qual foi abençoado, enquanto o vilão acaba tendo que usar de seus méritos para compensar os danos e injustiças que sofreu na vida. A “tarefa” de ser um vilão, acaba envolvendo diversos dilemas éticos, muitos desses vários de nós já tivemos. E é bem possível que a tênue linha que separa um vilão de um anti-herói ou até mesmo do próprio herói seja apenas o ponto de vista.

Se um personagem é  uma pessoa correta e se comporta segundo as normas sociais, não é interessante fazer uma obra sobre ele. Isso se dá porque se espera (minimamente) que todos nós nos comportemos dentro dessas regras, que podem ser contratos sociais sutis ou leis escritas. Mas se alguém infringe esses contratos, é interessante que se faça uma análise sobre os motivos que o levaram a cometer tais atos e aí se tem um plot para um filme, onde pode se desdobrar uma ampla investigação psicológica num estudo de caso, como é em Coringa, ou uma motivadora história de superação e vingança após longos anos de humilhação, como é em Cruella. Isso acontece, inclusive, dentro de julgamentos de crimes reais, uma vez que a avaliação psicológica do criminoso, o que envolve análise do contexto familiar, social, econômico, entre tantos outros, auxiliam a um julgamento mais assertivo e justo. 

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Uma outra característica é que os atos maléficos de anti-heróis são motivados por prévias injustiças das quais eles outrora foram vítimas. Nesse aspecto, podemos facilmente nos identificar com o personagem, uma vez que já fomos vítimas de injustiças em nossas vidas, seja num contexto diferente ou num contexto semelhante. Uma outra maneira ainda mais fácil de identificação com anti-heróis é pela via da agressividade, um sentimento de fácil projeção. A diferença é que nossa expressão de agressividade é muito limitada pelos contratos sociais, o que pode inclusive nos fazer adoecer por manter esse sentimento reprimido sem vias de expressão. Nas telas, o anti-herói  é geralmente um fora da lei e não se preocupa, portanto, em se comportar bem, podendo expressar e atuar seus sentimentos, não importa o quão sombrios. Seria interessante se pudéssemos expressar nossa agressividade ou nosso lado “malvado” sempre que quiséssemos, embora todos fazendo isso ao mesmo tempo pareça ser um contexto muito caótico.

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Quando somos crianças, os super heróis servem de artifícios culturais para a introjeção de bons valores que a família e a cultura como um todo tem interesse em introjetar em todos os cidadãos, como coragem, honestidade, lealdade, etc. Entretanto, ao amadurecer, passamos a entender essas questões sociais de maneira mais “cinza”, ou seja, de maneira mais subjetiva e menos determinista. Além disso, a maioria de nós já têm os valores básicos de cidadania e direitos humanos bem introjetados. A fase adulta, diferentemente da infância, é marcada por um psiquismo mais maduro, de inteligências cristalizadas. É a fase onde múmias e fantasmas deixam de dar medo e dívidas e carreira, por exemplo, passam a ocupar nossos pensamentos. Passamos a nos entender como parte da sociedade, inclusive passamos a sentir os sofrimentos socialmente típicos. Dessa forma, nada mais compreensível que seja mais interessante um personagem de baixa ascendência e que sofra das mesmas mazelas e que é moldado a ferro e fogo a ser uma força reativa a um sistema corrupto, uma organização opressora, um governo maléfico, entre tantos outros “vilões de adultos”, contra os quais não basta dar porradas.

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A popularidade dos anti-heróis é também um sintoma social. Enquanto instituições sociais são vistas com cada vez mais descrédito, personagens que incorporam uma espécie de cidadão de bem completamente honesto são mais caricaturas do que ídolos. Os modernos ídolos, os quais o filósofo Nietzsche metaforicamente quebrou com seu martelo, sejam estes pessoas ou sistemas, atualmente sofrem com a crescente perda de adoradores e seguidores, revelando que servem antes de tudo, como uma muleta moral para amparar aqueles que temem uma medida de autonomia e liberdade. Dessa forma, ídolos-modelos que concentram em si constelações de valores desejáveis, não são mais tão eficazes para gerar discussões e reflexões  sobre problemas éticos que podem de fato nos fazer melhorar enquanto pessoas e enquanto sociedade. Muito mais que um ídolo,  um mártir pode levantar de maneira mais eficaz essas discussões, oferecendo reflexões sobre as consequências de seus sofrimentos e o lugar que é possível que este ocupe.

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O anti-herói é portanto convidativo a uma variedade de identificações e tema de reflexões, a nível pessoal ou social. Ele tem motivações que só existem por uma causa, nos incentivando a fazer um trabalho de análise, reflexão e de prevenção a esses problemas. O anti-herói tem a licença que nos falta para transbordar e extravasar em certas situações. O herói é limitado pelos valores que o fazem herói e quando esses valores são quebrados, seu manto é manchado. Talvez, após essas reflexões, seja desejável sermos também um pouco anti-heróis.

Sobre Emerson Dutra

Um psicólogo que tem o mundo nerd como seu guarda roupa para atravessar para uma Nárnia que é mais divertida, interessante e justa que nossa realidade compartilhada.

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